The cure for boredom is curiosity. There is no cure for curiosity.

12
Nov 10

 

(ilustração fabulosa do Irmão Lúcia)

 

“Não gosto nada do Verão.”.

Achei a observação estranha porque tínhamos acabado de sair de um Inverno particularmente rigoroso. Para quem passava horas na rua, com o frio da noite a mastigar ossos e articulações, o fim da chuva e do vento devia ser um alívio. “Mas Lisboa fica tão vazia. E depois eu digo adeus a quem?”.

O João não gostava de ficar cá sozinho. Mas também nunca partia. Falava constantemente das suas viagens, mas sempre no passado. Não havia quase país onde eu pudesse comentar que ia de férias no qual ele já não tive estado. Viajou sempre muito com a mãe, “uma das primeiras mulheres em Portugal a conduzir”. Foram de carro até Marrocos e de transiberiano até à Rússia.  Sentia umas saudades dela que eram tão palpáveis que se sentavam à mesa connosco. Foi a sua morte que precipitou o “adeus” que afinal sempre foi um “olá”. Foi uma mulher que lhe deixou um vazio tão grande que era precisa uma cidade inteira para o preencher.

Conheci o João pelo Filipe, provavelmente o seu melhor amigo apesar da diferença de quase 50 anos entre ambos. Quando ele me disse que ia ao cinema todos os Domingos com o Senhor Do Adeus, quis logo juntar-me. Era figura pela qual tinha respeito e carinho mas, admito, achava bizarra. Chapada de luva branca: acabou por se revelar uma das pessoas mais sãs e bem resolvidas que alguma vez conheci. Uma lição que vou carregar com gosto pela vida fora.

Fazia sempre questão de tratar toda a gente que aparecia para o cinema domingueiro pelo nome. Em certas noites fomos muitos, mas sempre fez o esforço. “É Sandra?”. Susana, João. “Ai, desculpe lá. Esta cabeça já não dá para tudo. Susana. Eu vou lembrar-me”. Aquele engano incomodava-o mil vezes mais a ele do que a mim. Era um gentleman. E o certo é que acabou por se lembrar quase  sempre.  Generoso, conversador, acessível, o  Senhor do Adeus nem nunca foi Senhor João. Foi só João, mesmo.

Andava religiosamente com um saco de plástico, onde trazia as compras do dia do supermercado. Nunca vi ao certo o que lá estava dentro. Agora que penso nisso, nunca o vi comer. Era como se o João fosse um super herói de livros aos quadradinhos: sem nunca perder tempo como as necessidades do comum dos mortais, sempre com a mesma roupa e com um sentido de missão. Uma vez convidámo-lo para ir a uma peça de teatro. Mas era à tarde. “Ah, gostava imenso. Mas a essa hora estou a pegar no Restelo”. Aquilo que fazia era para levar a sério. Mas não tão a sério que um dia não me tenha perguntado, entre risos: “Onde é que eu devia abrir um franchising dos meus adeus: em Madrid ou em Barcelona?”.

Na última noite em que o vi, há duas ou três semanas, fazia 79 anos. Fomos os primeiros a chegar ao cinema e demorou cerca de duas frases a deixar escapar, como quem não quer a coisa, “hoje é o meu aniversário”. Mesmo à miúdo. O João era saudavelmente puto em muitas coisas, um menino da mamã que nunca cresceu verdadeiramente. Dizia sempre que não sentia a idade que tinha. Comentei que quando fizesse 80 anos devíamos juntar os amigos todos dele numa sala de cinema. Riu-se e disse que gostava. Não veio com aquele discurso típico de velho de “ui, para o ano sei lá se estou cá”. Porque o João não era velho. E preferiu passar o serão do seu aniversário a ver um filme de terror connosco do que a jantar com a família. “Pedi-lhes antes para ser almoço”. E eles perceberam? Encolheu os ombros. Os irmãos nunca perceberam muita coisa sobre as opções de vida dele. “Eles são mais velhos do que eu”, dizia várias vezes sobre os seus familiares que o calendário insistia em dizer que eram mais novos.

Nos últimos meses, falou-me com orgulho de como tinha sido entrevistado por uma revista de Milão, por um canal de TV espanhol ou mencionado num roteiro de Lisboa (vou sempre recordar como ficou triste por a Time Out Lisboa o ter entrevistado para um número sobre “cromos” da cidade. Não gostava nada de ser chamado de cromo.). “É viajar sem sair daqui, sabe?”. Quando lhe disse que ia para Itália em Agosto, mostrou-me o livro que andava a ler: um guia velho, amarelo e desactualizado de Florença. Porque gostava muito de arte e porque era novo esforço para partir sem deixar as pedras da calçada alfacinha.

Também estava muito orgulhoso por terem feito duas músicas sobre ela. Uma, um fado, chama-se “O Homem do Saldanha”. Mas agora já nunca ia para o Saldanha que o tornou famoso, por “já não ter tanta gente”. Preferia o Príncipe Real, cheio de “malta nova a ir e vir do Bairro Alto”. E agora o que é que dizemos ao senhor do fado, João? “Olhe, ele que faça mais uma música”.

O tal franshising espanhol: discordámos, como discordámos tantas vezes sobre filmes. Eu escolhi Barcelona, o João preferia Madrid. Mas era tudo uma piada, um saudável faz-de-conta, porque o João nunca ia sair de Lisboa. Nisso não discordávamos: é uma cidade mágica. Quantos mais viajo, mais o sei. E não é só por causa das colinas e da luz e do rio-quase-mar: é porque Barcelona ou Madrid nunca vão ter um João.  São as pessoas únicas que fazem as cidades únicas.

 

publicado por Miss November às 01:41

4 comentários:
:')
Bruno Raposo a 12 de Novembro de 2010 às 11:01

Felizmente eu ainda tenho um João, o João Faria de Pombal, que me dá sempre um quentinho no peito quando o vejo por Pombal vestido à Indiana Jones à procura de fosseis de dinossauros
Bruno Raposo a 12 de Novembro de 2010 às 11:04

Emocionaste-me.
Não fui convosco ao cinema muitas vezes, nem me lembro de o ter ouvido contar todas essas histórias. Lembro-me apenas de ter ficado feliz e entusiasmada por o ter conhecido.
Vou continuar a sentir-me assim.
andreia a 13 de Novembro de 2010 às 01:45

:)
senhordoadeus a 20 de Novembro de 2010 às 03:22

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